I - CARACTERÍSTICAS GERAIS

Ao contrário da sua finalidade-declarada - a livre circulação da informação - o cartel da GMB opera o seqüestro da informação, de modo a intervir no espaço público, o cenário simbólico de ação de instituições oficiais, entidades civis, movimentos sociais e culturais. Constitucionalmente a salvo de qualquer ingerência legal em sua aparente atividade-fim, o oligopólio executa no plano psicossocial o projeto secreto das elites dirigentes, iniciado com a escravidão, de separação induzida do Brasil Legal do Brasil Real, visível na fratura social exposta da guerra civil em curso.
Acima do bem e do mal, a função principal da Grande Mídia Brasileira é manter intocável o emaranhado de leis, decretos, sentenças, discriminações formais e informais que concentram a maior parte da riqueza nacional entre os habitantes do Brasil Legal, e, paralelamente, bloquear o esforço pró-desconcentração de renda da população do Brasil Real.
A GMB é decisiva no processo político causador da diferença chocante entre o Brasil oficial, bonito por natureza, primeiro-mundista, dono de quase tudo, que come quantas vezes quer, mora, veste, educa-se, fala e consome bem e o Brasil extra-oficial, dono apenas da vontade de sobreviver, que come quando pode, veste, educa-se, fala e consome mal, feio de pele, cabelo e cacoetes terceiro-mundistas.
Vislumbrado pela primeira vez por Cláudio Abramo, talentoso jornalista, no livro "A Regra do Jogo", um pensamento oculto guia o comprometimento da Grande Mídia Brasileira como operadora do plano secreto de apartar a grande minoria com-tudo da grande maioria sem-nada.
Mais recentemente, o combativo jornalista Jânio de Freitas especulou sobre "as regras indeclaráveis" da grande imprensa, o cerébro da rede multimidiática. As regras indeclaráveis são a metodologia aplicada do pensamento oculto, tudo indica. O pensamento oculto ainda não ousa se expor e as regras indeclaráveis continuam nebulosas, mas a prática possibilita identificar as impressões digitais da GMB no desenho do apartheid social.
O seqüestro da informação com base em códigos seletivos tidos como intelectualmente válidos é o ponto de partida da escalada corruptora, ética e institucionalmente, de legitimação da exclusão. No nicho vazio da informação seqüestrada, a GMB processa mensagens programadas de adulteração da vontade pública de mexer nos mecanismos do apartheid. Liberada, a partir daí, a linha de montagem de verdadeirização da mentira e mentirização da verdade se desdobra em etapas sincronizadas de secundarização do importante e principalização do irrisório.
A realidade factóide ocupa a vaga da realidade desvisibilizada e automatiza a produção das culturas de alheamento, dessensibilização, desidentificação, resignação, oportunismo e desagregação, marcas negativas do caráter brasileiro. Vale tudo na intromissão indébita para manter desequilibrada a correlação de forças sociais. A GMB bombeia medo do inconsciente coletivo para avivar a fobia das elites aos pobres, e, com fundamento, o pavor dos pobres aos ricos.
Surtos intempestivos de truculência em situações mínimas de tensão ressuscitam oportunamente a lembrança da chibata, o símbolo senhorial por excelência. A linguagem oficial do terrorismo é regra indeclarável do pensamento oculto a serviço do projeto secreto de desintegração social. O ciclo corruptor da informação, com impressionante conotação de crime de falsidade ideológica, se fecha com a fabricação de opinião pública, apresentada como expressão da vontade pública, na verdade um simulacro decorativo mas deletério de produção de consenso da desigualdade.
À primeira vista inviável em população descomunal e heterogênea, o controle social pela informação fulmina teorias com fatos irrefutáveis e conseqüências comprováveis. Sob a implacável vigilância do jogo político pelo oligopólio, goraram as tentativas de atenuação da desigualdade social. A respeito de profundas alterações institucionais e políticas, a concentração de renda cristalizou-se nos últimos 30 anos, fiel à curva de dados empíricos delineada pela primeira vez em 1848.
Acumulam-se as evidências de que governos e regimes revezam-se para salvaguardar o rateio iníquo da renda. As perspectivas de êxito do governo votado massivamente para intermediar um novo pacto social dependerão do humor dos barões da mídia. No dia seguinte à vitória de Lula, José Dirceu antecipou que "a crise da mídia é questão de interesse nacional", a propósito do rombo da Rede Globo. Descobriu em seguida que "uma empresa como a Globo, assim como a Varig, não pode quebrar" (FSP 13/04/03). Em nome do país e do bem público, vem aí a Dívida Zero para o setor de ponta empresarial assumidamente antinacional e antipovo.
Não há porque duvidar da sinceridade do governo Lula e também porque confiar piamente na sua capacidade de mexer na distribuição de renda. Fenômeno raro de partido de princípios abomináveis à GMB que agigantou-se, o PT não deixará de negociar diretamente com ela a estabilidade do governo. O partido em que a sociedade apostou todas e talvez últimas fichas de esperança em mudanças estruturais empacou na encruzilhada de cooptação. A mesma linguagem neoconservadora passou a embalar o samba de uma nota só da resignação às imposições antidesenvolvimentistas.
Central única das elites - monolítica, truculenta e perversa - a GMB costuma deitar o charme sedutor dos holofotes sobre as vítimas, antes de disparar mísseis aniquiladores. Um apenas dos muitos artifícios fatais da estratégia de pactos de conciliação entre ex-adversários irredutíveis que perpetua a desigualdade social. Espantado com a perícia das elites brasileiras na multiplicação de privilégios, o historiador americano Thomas Skidmore definiu o Brasil como "máquina de distribuir renda para cima".
O oligopólio da GMB é a perícia escrita, falada e televisada do antiprojeto nacional de produzir miséria em grande escala. O controle social pela informação - o que o brasileiro pode ou não saber e deve ou não sentir sobre o Brasil, o mundo e ele mesmo - exerce hoje o mesmo papel das barreiras de acesso à educação antes da Revolução de 30, sem necessidade de reforço policial ou militar.
A GMB move-se com autonomia coronelística de Guarda Nacional na contenção dos focos de rebeldia política. O brasileiro deita sem saber o que de bom ou ruim aconteceu e levanta sem a menor idéia se o dia será pior ou melhor. Uma pesada névoa de solidão recobre a paisagem social. Poucas populações são tão desorientadas e carentes das noções primárias de deveres e direitos. "O sofrimento do povo, por incrível que pareça, é muito mais por falta de informação do que qualquer outra coisa".
Por ignorância. Às vezes o hospital está do lado da casa dele, mas ele não sabe que tem hospital, não sabe internar, não sabe perguntar. Brasileiro não sabe usar o direito dele". Carlos Massa - o Ratinho - revista Press 19, entrevista a José Luiz Prévidi. Os códigos seletivos - o elitismo - que originaram a multissecular rejeição ao conhecimento formal no Brasil, são os mesmos que impulsionam a ruptura dramática da maior parte da população com a informação pública, desde a elementar do dia-a-dia (o que fazer contra o mosquito da dengue) ao repertório básico da chamada cultura cívica.
A eleição de Lula é o único sinal pulsante de inteligência social coletiva. A GMB em nada contribui para a educação do povo. Ela é subvencionada para deseducar e dessociabilizar e cumpre à risca a tarefa de rebaixadora cultural pelo que diz e não diz em sua linguagem viroticamente desagregadora. Cristóvam Buarque matou a charada da telenovela numa observação: "Já viram alguém lendo um livro ou biblioteca no cenário?". Muitos já haviam reparado que poucos trabalham, as e os de sempre.
A GMB consegue a façanha de fundir o legado de obscurantismo das oligarquias tradicionais ao vandalismo da teleguerra neoliberal dos ricos contra os pobres. As bem-pagas cabeças pensantes convalidam a ligação tenebrosa com os rituais embrutecidos de convívio - a perda de confiança no comportamento do outro - que esguicham sangue a um mero olhar ou gesto banal.
A não ser pela assinatura na coluna, é difícil diferenciar cabeças pensantes e pistoleiros de aluguel da GMB, cavalheiros e madames de fina estampa. Uns vendem idéias enlatadas de primeiro-mundismo, outros executam com palavras imagens públicas perigosamente brasileiro-mundistas. Oficialmente, patriotismo e nacionalismo são pensamentos e sentimentos toscos no grande jornalismo brasileiro, que só pegam bem no carnaval publicitário de Copa do Mundo.
As elites fundadoras argentinas optaram por povoar o país com um povo orgulhoso, as brasileiras desfundadoras contam com a GMB para expurgar a auto-estima da identidade nacional. Não deve haver outra igual na vocalização do menosprezo a seu povo, propositadamente empenhada em desconstituir dignidades individuais e coletivas. Deve ser o motivo não explicado de Mino Carta acusar a nossa grande imprensa de ser "a pior do mundo".
Mais do que alérgica à cidadania, medularmente anticidadã, agente ativa de desgentificação. Motivos não faltam para classificação da GMB entre as mais sórdidas na cumplicidade consciente com a desintegração social. A repressora da consciência cidadã testemunha permissivamente a depredação dos recursos naturais, o saqueio do patrimônio público e a impunidade, artimanhas legais ou ilegais de concentração de renda.
A lei nunca vale para as mágicas trambiqueiras do Brasil Legal e deixou de valer para as correrias sangrentas do Brasil Real. A lei não vale mais para ninguém, à exceção da Responsabilidade Fiscal. Todos contra todos. Salve-se quem puder. Há tantos delinqüentes em potencial no clube cara bonita dos shoppings e da TV a cabo quanto na galera cara feia dos trombadinhas. Na fuga às responsabilidades de monopolizadora da palavra e da imagem, a GMB opta por sacralizar a terapia da violência oficial contra a desordem social nas ruas, não nos salões e gabinetes.
Márcio Thomaz Bastos se engana. A suposta glamourização midiática de Fernandinho Beira-Mar é truque para marcar a ferro quente uma população e um território perigosos no subconsciente da classe média. Na produção de sentido para o imaginário da exclusão social, a GMB destila racismo.
No observatório da Grande Mídia Brasileira, o telescópio desterra os corpos informativos de primeira grandeza para os confins das galáxias. A grande reportagem foi aposentada, o furo, abolido, as sucursais fechadas. As agências de notícias dos jornalões trabalham sob encomenda, ótica e acústica do mercado financeiro, principal cliente. Dez nomes, se tanto, desfilam nas passarelas colunísticas o pensamento político, econômico, tricas e futricas do Rio, São Paulo e Brasília.
O pseudo-debate político nacional, imposto de cima para baixo, soterra realidades e peculiaridades regionais. Mais acariocado, apaulistado e acadangado do que nacional, o noticiário caiu no ferrolho de análises de ex-ministros da Fazenda, ex-presidentes e ex-diretores do Banco Central, hoje por coincidência banqueiros privados e consultores econômicos e de professores-doutores candidatos a uma vaga na maçonaria do respeito aos contratos.
Diretores e editores de jornalões em disponibilidade não-remunerada se asilam em diretorias e assessorias de bancos e bolsas de valores. A teia planetária de tralhas tecnológicas fantásticas, de espaço virtual e tempo real, não consegue, no Brasil, captar a realidade doméstica do dia-a-dia.
Cada vez mais, menos informação em carne e osso. No mundo todo, a "mídia detém o poder de saber; o poder do poder saber; o poder de mostrar; o poder de julgar". Na definição do professor Antônio Fausto Neto (UFRJ), faltou o item fonte do poder da GMB, o poder de não mostrar que assegura condições plenas de exercício do controle social. Basta, para isso, centralizar, unificar e homogeneizar a informação mostrável, missão de uma burocracia incubada nas estufas do jornalismo elitista.
A burocracia editorial da GMB, tão inflexível quanto a do Estado no policiamento do acesso aos serviços públicos, é mais nefasta socialmente. Pior do que indeferir a concessão de alguma benesse justamente reclamada é negar a informação que gera expectativa de direito. O cidadão maltratado pela burocracia oficial tem a quem recorrer, o desinformado de seus direitos é vítima impotente de um esbulho praticado em nome da liberdade de imprensa. A liberdade de esconder informação.
Em dia talvez não muito longínquo, Ratinho irá a uma escola de comunicação social expor o teorema da desinformação de sua autoria. "Lamentavelmente, desde o Império nós estamos vivendo entre o casarão e a senzala. O povo continua na senzala e a imprensa no casarão. Os donos dos grandes jornais são os bilhardários.
Enquanto o casarão não descer à senzala, ele não vai saber o que acontece lá dentro". Se continuar pensando nesse ritmo, o próximo estalo de Ratinho pode lhe custar R$ 1 milhão de reais por mês. O unimultimidiático Diário Oficial das elites está programado para processar informação padronizada e com carimbo de fonte oficial ou oficiosa.
A burocracia da informação é bem mais do que "governomaníaca", descoberta semântica tardia de Marcos de Sá Corrêa, ex-Veja, ex-editor-chefe do Jornal do Brasil. Mais lúcido, seu pai, Villa-Boas Corrêa, decano do jornalismo político, acerta na mosca: "No jogo político de cúpula, o povo não entra". Uso privativo das elites, a GMB chapa-branca é apenas emprestada a governos factóides, caso do período FHC. O Brasil que desce para cima, sobe para baixo e avança para trás (José Simão) arrasta a GMB ao fundo, mas ela não abre mão do direito de estatizar seus calotes nem de pré-fabricar pressão para as coisas não mudarem.
Mídia gráfica de vexatória tiragem e desinteressada de mais leitores, mídia eletrônica de trambiques e baixaria no entretenimento, o poder real da GMB emana da capacidade de fragmentar a vontade pública de fazer o Brasil dar certo. Deseduca para descidadanizar, na função sinistra de despolitizar as tentativas de organização da sociedade. Se cumprisse a finalidade-declarada de democratizar a informação, perderia o status de monitora do antiprojeto de nação.
A GMB não pode voltar atrás nos descaminhos de sócia e base de sustentação do poder. O cara-durismo na produção da agenda política das elites pela desvibilização da realidade não escandaliza mais. No Roda-Viva (25/01/03) com Horácio Lafer Piva, presidente da Fiesp, ninguém indagou sobre como desconcentrar renda para desinflar a desigualdade social. Em 40 minutos de toma-lá-dá-cá, o bom-mocismo recíproco estacionou nas reformas da previdência e tributária. Tema do programa: o pacto social de Lula! A realidade desvibilizada exige outra em seu lugar para consolidar a hierarquia social.
O populismo midiático da modernidade encobre o fundamentalismo econômico de supressão do direito ao trabalho e à remuneração, face e verso da identidade social. Atrás da fachada de mediação social, a GMB organiza o topo à custa da desorganização da base da pirâmide social.
Regra principal do jogo político de cartas marcadas: poder concentrado, renda idem. Na encenação de espaço público livre, a concentração da informação legitima poder e renda em poucas mãos. Na estratégia de vigilância das fronteiras sociais, as únicas que preocupam as elites, a GMB cumpre sem relutância a incumbência de policiar a passagem pelas barreiras legais e subjetivas de mobilidade e ascensão.
A reação histérica a cada reajuste do salário mínimo exemplifica o pânico diante da possibilidade da reação em cadeia influir no fatiamento da renda. Com o aval da grande mídia da época, no intervalo entre a queda e a volta de Getúlio Vargas, o salário mínimo foi congelado. Houve o reajuste, os generais receberam sinal verde para conspirar. Nada muda.
A economia se multiplica e o salário mínimo encolhe. Barreira crucial na mobilidade social, salário baixo, além de injusto, afunila o consumo, asfixia e encarece a produção industrial, mas produz concentração de renda e desigualdade, é o que importa ao Brasil Legal. Em l8/03/01, editorial do Jornal do Brasil decretou o toque de silêncio na polêmica de reajuste do salário mínimo. De parte de um jornal, vergonhosa confissão de autocensura.
Mais astutos, outros jornalões e revistonas censuram sem confessar ou editorializam o terrorismo da falência da Previdência Social e das prefeituras. Total, o veto à abertura das barreiras sociais impõe a desvibilização dos problemas sociais graves (desemprego, educação, terra, habitação, saúde), como se não existissem. Os próprios jornalistas passam a acreditar na realidade cor-de-rosa.
Principal mediador da Rede Globo, alta milhagem internacional, William Waack caiu para trás no Globo News Painel (10/10/01) quando alguém falou que "o problema do racismo está por trás da desigualdade social". Tentou disfarçar a surpresa com a existência de apartheid no Brasil, que nunca leu no Financial Times, seu jornal preferido.
Jornalistas impregnados dos padrões subjetivos de autocensura passam a ser agentes públicos de ocultação da realidade. Com autocensura tão prodigiosa, a GMB não carece de censura; ela é a própria. Parece segredo, mas é regra escrita. Luiz Garcia, editor de Opinião de O Globo, condensou pragmaticamente a filosofia do jornalismo não-notícia: "Em redação, só dá problema o que você publica, não o que deixa de publicar". Ricardo Boechat pinçou o caroço ideológico enrustido no angu da notícia: "A informação é subproduto do poder".
As sacadas geniais de Garcia e Boechat fortificam a indignação de Clóvis Rossi, repórter de nome e colunista página 2 da Folha de São Paulo: "No Brasil, ninguém diz o óbvio". As três frases flagram o jornalismo não-notícia responsável pelas vulcânicas erupções de escândalos e tragédias de tempos em tempos. Subitamente, bombas-relógio à vista de todos, devastam a credulidade nacional. Por algum misterioso apagão, não são percebidas em tempo pela grande imprensa, das infiltrações do narcotráfico à corrupção da cartolagem da bola.
A proteção das oligarquias de todos os setores, base de sustentação da pirâmide do poder, faz parte do pacto obsequioso de silêncio das grandes redações. Guardiã ciosa da coesão das elites, a GMB fecha os olhos às ramificações de ilicitude em cada negócio, até virem a furo acidentalmente. O imenso vácuo ético, a chocadeira do crime de colarinho branco, tem a ver com o jornalismo não-notícia. Pega no contrapé de cumplicidade na farra da privatização, a GMB não previu o apagão e compactua com a cobrança de tarifas sobre energia não consumida. O consumidor embarcou ingênuo na pantomima da economia de luz e desembarcou otário pela mão do apagão do apagão, a GMB.